Por Virgílio Melo, criador de gado guzerá(OBS: Apesar de escrito por um criador de guzerá, o artigo abaixo não se destina somente à raça criada por seu autor)
A finalidade óbvia de qualquer exploração econômica é o lucro. Contudo, na pecuária bovina, a premissa de especialização por produto (carne ou leite) tem se sobreposto ao crivo da lucratividade. Ora, todo bovino é mamífero, portanto nasce de uma fêmea produtora de leite. O fim mais provável do bovino é o abate, quando então será produtor de carne. Obviedades à parte, é necessário dizer que especialização na produção vem sendo confundida com profissionalismo e eficiência, em prejuízo do lucro.
Examinemos como esta noção da necessidade inexorável de especialização surgiu. Durante e logo após as Grandes Guerras houve drástica redução da disponibilidade de alimentos na Europa. Períodos de fome e racionamento não foram incomuns. Os governos, após 1945, iniciaram programas de subsídios pesados aos produtores, para que aumentassem rápida e drasticamente a produção de alimentos. Investimentos em biotecnologia também contribuíram para estes objetivos. Na pecuária, inseminação artificial e uso de sistemas computacionais acoplados a programas de melhoramento genético em larga escala tiveram grande impacto sobre animais e modos de produção. O importante era produzir muito, e não produzir a baixo custo. Os produtores, além dos subsídios, passaram a ter garantia de compra, por parte do estado, de toda a produção excedente, a preços pré-estabelecidos. A preocupação vigente até a década de 1970 era de que os recursos alimentares não crescessem na proporção do crescimento demográfico (teoria de Malthus). A seleção genética para um pequeno número de características, própria das raças e explorações especializadas, daria resultado mais rápido, nestas circunstâncias, do que a de modelos de duplo propósito.
A partir de 1980, o mundo temperado passou a acumular grandes estoques excedentes de produtos bovinos. Os cidadãos-contribuintes começaram a questionar a manutenção dos subsídios agrícolas. Estes entram em lento declínio. Na década de 1990, países asiáticos e do oriente médio aparecem como grandes importadores de proteína animal. Embora ainda haja barreiras alfandegárias e subsídios, cada vez mais o mercado internacional de carne e lácteos passa a demandar qualidade com preços competitivos. Para se integrar a este ambiente, qualquer país ou pecuarista necessita de baixo custo de produção, e não apenas alta produção por animal ou por área, como no tempo dos subsídios.
O futuro aponta para a redução progressiva dos subsídios. Também as turbulências globais recentes (queda das bolsas de valores em 1998, atentados nos Estados Unidos em 2001, doença da vaca louca, aftosa em vários países, oscilações climáticas, etc.) têm acrescentado volatilidade cada vez maior às cotações de carne e leite no mundo. Tudo isto é próprio do sistema de mercado livre, e veio para ficar.
Os modelos de produção de duplo propósito são especialmente versáteis neste ambiente econômico. Não apresentamos aqui apenas argumentos teóricos, mas fatos concretos, inquestionáveis:
- Na Europa, desde o final da década de 1990, os produtores de leite só recebem subsídio estatal se mantiverem o bezerro ao pé da vaca (em vez de sacrifica-lo) até o desmame, como forma de reduzir a produção leiteira (e os estoques excedentes de lácteos mantidos pelo estado). As raças de duplo propósito têm crescido e as leiteiras especializadas quase levadas à extinção. (Revista DBO, )
- No Reino Unido, berço de algumas das melhores raças de gado de corte, dois
terços dos machos abatidos são da raça holandesa.
- Na Nova Zelândia, maior exportador mundial de lácteos, apesar da herança cultural britânica, a raça holandesa tem sido a preferida para a produção de leite a pasto. Motivo: gera um produto adicional – machos viáveis para engorda, ao contrário das raças jersey, guernsey e ayrshire. (Revista DBO, ).
- Hoje, no mundo, a maior parte dos animais abatidos vem da raça holandesa, pura ou em mestiçagem. Apesar da carcaça pobre, tem grande velocidade de crescimento, levando-nos ao aparente paradoxo: o holandês é a maior raça de corte do mundo .
No Brasil, o sistema de pesquisa agropecuária federal foi idealizado por um agrônomo americano, partindo da premissa (equivocada) da especialização na produção bovina. Temos uma EMBRAPA – Gado de Leite em Juiz de Fora (MG), e uma EMBRAPA – Gado de Corte em Campo Grande (MS) que quase não se comunicam. Infelizmente, o foco de cada centro está colocado no produto – leite ou carne – e não temos uma EMBRAPA - Gado de Lucro (foco no resultado econômico).
A história das últimas décadas no Brasil nos tem mostrado que a produção leiteira especializada (gado europeu, descarte dos bezerros machos ao nascimento, confinamento total, produções maiores que 15 kg /leite/vaca/dia) está em declínio acentuado. O desfile das liquidações de rebanhos que usaram toda a “tecnologia” disponível nos países temperados não deixa margem a dúvida quanto à inviabilidade de tal manejo entre nós.
Por outro lado, a pecuária de corte exclusiva é amiga de terras baratas, homogêneas e extensas. Estas estão sendo tomadas pela agricultura, muito mais rentável. A pecuária extensiva sempre existirá no Brasil, Argentina, Austrália e Estados Unidos, como já nos afirmava Preston, em 1977 ( ). Contudo, ocupará cada vez menos terra, mais distante e/ou de pior qualidade que aquela destinada a outras finalidades mais lucrativas.
Já a produção de leite no Brasil, a despeito de tudo que se divulga sobre a baixa rentabilidade e alto risco da atividade, vem crescendo a taxas anuais em torno de 5% há trinta anos. Isto é fato inquestionável ( ). Será que tanta gente gosta de tomar prejuízo, ao longo de anos a fio? Ou estes pecuaristas que têm alavancado a produção brasileira de leite têm alguma fórmula de lucro, ao arrepio da “tecnologia” preconizada por pós-graduados no estrangeiro que aqui pontificam?
Uma minoria de nossos pesquisadores da área tem se debruçado recentemente sobre o assunto, dispostos a rever os paradigmas. Analisaram o sucesso econômico dos sistemas de criação , em vez de centrar foco na carne ou no leite. Pequenas peculiaridades à parte, havia em comum nestas explorações: produção de leite predominantemente a pasto; recria dos bezerros machos e venda de animais excedentes como parte importante da renda ; uso de heterose zebu/europeu (especialmente genótipos F1); produções diárias entre 9 e 14 kg/ leite/ vaca/dia. A rentabilidade anual sobre o capital investido foi de 29 a 36%, em vários trabalhos, computadas todas as depreciações existentes, custo da terra, etc. Tais pesquisas foram realizadas com chancela da EMBRAPA, Escola de Veterinária da Universidade Federal de Minas Gerais, Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais, Universidade de São Paulo ( Álvares.........., Holanda...... etc ). Os dados foram obtidos a partir de sistemas comerciais de produção, com escala viável (de 1000 a 10000 litros de leite/ dia). A rentabilidade, em cada região e em anos diversos, foi igual ou maior que a da cana e da soja.
Além disso, deve-se considerar os impactos ambientais e sociais da produção de carne e leite. Sistemas intensivos têm sido incriminados por poluição de cursos d'água. Por outro lado, a pecuária extensiva de corte quase não gera empregos. Também nisto a exploração mista leva vantagem: gera mais benefício social com produção auto-sustentável.
Em suma, a visão tradicional de que a pecuária de duplo propósito é igual a um ganso: “nada, anda e voa - todos três, mal”, é equivocada. Ela apresenta vantagens, em relação à produção especializada, quanto a oscilações do preço da carne e do leite, climáticas, justiça social e equilíbrio ambiental. Além do que, é mais lucrativa. Perguntem-no à CFM (10000 litros de leite/ dia), Hélio Coelho Vítor, de Passos, MG (8000 litros/dia), Tininho Carvalho, de Muriaé, MG ( 10000 litros/ dia). Ou será que alguém tem preconceito contra o lucro?